quarta-feira, 3 de agosto de 2011

CRÔNICAS AO EDUCADOR - "Cabeu?"

“Cabeu?”

- “Cabeu”, pai?

- Não é “cabeu”, filho é “coube”.

- Não, pai, eu quero saber se “cabeu”.

- Mas “cabeu” ou não?

Desisto. Digo a ele que “cabeu”, ao que recebo um sorriso de alegria, um pouco pela vitória ante a minha insistência naquele tal de “coube”, mais ainda porque os palitinhos do jogo de armar não ficaram soltos – bom que couberam na caixa que eu arrumara. Descubro assim o gosto da derrota vitoriosa: se por um lado não imponho a correção da forma, de certa maneira aprendo que nem sempre o correto é o mais certo, porque entre um pai e um filho há de haver linguagens muito mais expressivas que aquelas previstas, revistas, pensadas e passadas a limpo no resfriamento das nossas relações mecânicas com o nosso próximo.

Durmo com a descoberta e acordo na mesmice do meu caminho, talvez enriquecido um pouco pela queda, ainda que parcial, da intransigência que a profissão me impõe. Afinal de contas, um professor de Português não pode abrir mão das correções, suas aliadas para o reconhecimento público da sua competência .

Na aula do dia seguinte, cobro um verbo cuja correta conjugação escapa ao corriqueiro, e o “valo” ecoa atrevido pela sala. O erro incomoda, e o primeiro impulso me remete ao topo de uma escala que inconscientemente criei, quem sabe até para proteger-me na dificuldade de me revelar, amparado no conhecimento de normas a poucos acessíveis. No entanto , de um desses refúgios esquecidos do subconsciente, uma voz amiga me lembra a riqueza da tolerância, como um conselheiro a revelar que a compreensão não exclui o ensinamento, necessário, é claro, entretanto muito mais profícuo ser mais acolhedor e espontâneo.

A lição do dia anterior calara indelével.

E depois de tantas aulas (ora, que ironia), atino para a importância do pai no professor. Não que o descubra inteiro, naquilo que poderia ser uma substituição, que um não pode excluir o outro, mas vejo-os juntos, completando-se, na ideal conciliadora simbiose de carinho e conserto, ensino e tolerância, direcionamento e respeito.

A indelével lição do dia anterior me faz ver agora os alunos com outros olhos, e que fossem olhos de todos os professores: um pouco pai, um pouco mestre. Então diviso um novo caminho que se pode abrir. Penso ainda que essas facetas já habitam em nós, que escolhemos essa profissão, mas deixamos que às vezes uma tome para si a regência da tarefa, em detrimento da outra, igualmente necessária.

O que peço, na verdade, é que elas estejam sempre juntas, fortalecidas cada vez mais pela compreensão e pela clareza, fazendo de cada um de nós, professores, um pai que ensina, que corrige, que repreende, dentro de um mestre que afaga, que conforta e que tolera.

Autor: Almiro Dottori Filho

Prof. de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira no Colégio Argumento – Objetivo São Miguel de São Paulo.

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